terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A lenda da igreja de pedras e os sete caboclinhos


Igreja do Bom Jesus do Matosinho em Barra do Guaicuí

O muro percebeu tarde demais que a humildade da noz e seu voto de ficar escondida numa fresta não eram sinceros. Arrependeu-se de não ter dado ouvido aos sinos.  A nogueira continuou a crescer e o muro, o pobre muro, desmoronou e ruiu.

por Geraldo Gentil Vieira

Sempre que visito Barra do Guaicuí na foz do rio das Velhas e no sopé da Serra da Onça, observo que a secular igreja do Bom Jesus de Matosinhos ruirá sob o jugo da força tentacular de raízes estrangulando as pedras de cantaria. Não existe beleza em uma coisa que destrói outra.
 
Mas ainda há tempo... para salvar a igreja várias vezes secular, desde que a comunidade assim o queira. Vamos a uma fábula do genial Da Vinci contada por ele num recente passeio que fez à bucólica vila no último outono. Como bom italiano, provou dos vinhos produzidos ali perto. Lico Paiva o acompanhou como guia.
 
ERA UMA VEZ... Um corvo pegou uma noz (fruto da nogueira) e levou-a para o topo de um alto campanário. Segurando a noz com as patas começou a bicá-la para abri-la. Porém subitamente a noz rolou para baixo e desapareceu numa fresta do muro.
 
- Muro, meu bom muro, suplicou a noz, percebendo que estava livre do bico do corvo, - pelo amor de Deus, que foi tão bom para você, fazendo-o alto e forte, e enriquecendo-o com esses belos sinos de tão lindo som, salve-me, tenha pena de mim! Meu destino era cair entre os velhos ramos de meu pai, prosseguiu a noz, - permanecer no rico solo coberto de folhas amarelas. Por favor, não me abandone! Quando eu estava sendo atacada pelo terrível bico daquele corvo feroz, fiz um voto. Prometi que, se Deus me permitisse escapar, eu passaria o resto de minha vida dentro de uma frestinha.
 
Os sinos, num doce murmúrio, avisaram o campanário que tomasse cuidado porque a noz podia ser perigosa. Porém o muro, teve compaixão e decidiu abrigá-la, deixando-a ficar onde havia caído. Dentro em breve a noz começou a germinar e a estender raízes nas frestas da pedra.
 
Em seguida as raízes forçaram caminho por entre os blocos de pedra e surgiram galhos que saíam pela fresta. Os galhos cresceram, tornaram-se mais fortes e estenderam-se para o alto, acima do topo da torre. E as raízes, grossas e enroscadas, começaram a fazer buracos nos muros, empurrando para fora todas as velhas pedras.
 
O muro percebeu, tarde demais, que a humildade da noz e seu voto de ficar escondida numa fresta não eram sinceros. E arrependeu-se de não ter dado ouvido aos sinos.  A nogueira continuou a crescer e o muro, o pobre muro, desmoronou e ruiu.
 
Nem capela e nem gameleira.
 
Eu disse a uma assustada jornalista piraporense que a bela igreja seiscentista de pedra, era mais importante que a gameleira. O pé direito é da altura de uma gameleira adulta. Restaurada, poderia ser administrada por uma ordem, franciscana ou outra, e instituídos missas e festejos populares.
 
Pirapora, “rio onde salta o peixe”, nos espera com sua gastronomia, banhos de cachoeira e embarque no navio-gaiola Benjamin Guimarães. Antes degustaremos vinhos experimentais em projeto irrigado a meio caminho. Em Minas Gerais, videiras cultivadas no Cerrado produzem vinhos de qualidade. A intensidade da cor e aroma são características marcantes do vinho Syrah, também chamado Shiraz, de origem francesa, que se destacou pela adaptação, produtividade e qualidade. Foi criado por parceria entre a Epamig e fazendas no vale do Paracatu, Pirapora e municípios do sul do estado, tradicionais produtores de vinhos.
 
O vinho é produto da videira (variedade) com o solo (e sua microbiologia), o clima, altitude, adubação, irrigação, poda e as tradições do lugar. Vem daí o chamado terroir. Temos que pesquisar muito para a vitivinicultura nacional chegar ao patamar do Chile por exemplo, que percorreu o longo caminho civilizatório do vinho.
 
Segundo Jancis Robinson, no livro “Curso de vinhos”, “se o típico enólogo francês vê a natureza como força motriz, e o americano a vê como um demônio a ser domado, seus congêneres australianos vêem-se a si próprios como simples processadores da produção”. Estes fazem colheita mecanizada e não têm o menor escrúpulo de não usar rolha de cortiça, mas sim screw cap.
 
Alguns vêem o vinho como antídoto contra a barbárie, como o filósofo inglês Roger Scruton em livro recente: “A distinção entre países civilizados e incivilizados está entre os lugares onde o bebem e não o bebem”, um viés radical. Vinho, diz ele, não é apenas um produto agrícola ou industrial, mas a manifestação da alma de um lugar, de suas tradições, de seus deuses pagãos e tradições cristãs.
 
Quando morei em Pirapora ouvi uma estória contada por Eugênia Diniz Bastos, que tinha o hábito de singrar as águas do Velho Chico e Velhas em barcos. Ela dizia que as mangueiras de Guaicuí com cinqüenta anos já eram seculares, e enigmaticamente, que “Pirapora já não é o que era, mas Pirapora ainda é o que era”.
 
Vamos à lenda:
 
ERA UMA VEZ... no tempo que as galinhas tinham dentes e minha avó catava marinheiro de arroz... Meu avô sempre vivia às voltas com Caboclos d’Água, descendo pelo telhado ou fazendo túneis. Nas noites de lua cheia, na minguante e em todas as luas, bandos deles chegavam de galho em galho, saltavam para o telhado e daí desciam pela chaminé de mansinho. Muitas vezes vinha a família toda, pai, mãe e filhos em número de sete, todos caboclinhos.
 
Então bebiam os vinhos da adega, comiam queijos, pães de queijo, broas  e biscoitos. Faziam estrepolias no quintal e no jardim. O bom velhinho saía esbaforido tão bêbado quanto eles a enxotá-los com a bengala pelas barrancas, de onde dando risadas saltavam em cambalhotas nas profundezas do rio. Do outro lado da cachoeira sentavam-se nas pedras a zombar, cada um com uma garrafa de vinho nas mãos.
 
publicado originalmente na www.folhadomeio.com.br

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