Igreja do Bom Jesus do Matosinho em Barra do Guaicuí |
O muro
percebeu tarde demais que a humildade da noz e seu voto de ficar
escondida numa fresta não eram sinceros. Arrependeu-se de não ter dado
ouvido aos sinos. A nogueira continuou a crescer e o muro, o pobre
muro, desmoronou e ruiu.
por Geraldo Gentil Vieira
Sempre que visito Barra do Guaicuí na foz do rio das Velhas e no sopé
da Serra da Onça, observo que a secular igreja do Bom Jesus de
Matosinhos ruirá sob o jugo da força tentacular de raízes estrangulando
as pedras de cantaria. Não existe beleza em uma coisa que destrói outra.
Mas ainda há tempo... para salvar a igreja várias vezes secular, desde
que a comunidade assim o queira. Vamos a uma fábula do genial Da Vinci
contada por ele num recente passeio que fez à bucólica vila no último
outono. Como bom italiano, provou dos vinhos produzidos ali perto. Lico
Paiva o acompanhou como guia.
ERA UMA VEZ... Um corvo pegou uma noz (fruto da nogueira) e
levou-a para o topo de um alto campanário. Segurando a noz com as patas
começou a bicá-la para abri-la. Porém subitamente a noz rolou para baixo
e desapareceu numa fresta do muro.
- Muro, meu bom muro, suplicou a noz, percebendo que estava livre
do bico do corvo, - pelo amor de Deus, que foi tão bom para você,
fazendo-o alto e forte, e enriquecendo-o com esses belos sinos de tão
lindo som, salve-me, tenha pena de mim! Meu destino era cair entre os
velhos ramos de meu pai, prosseguiu a noz, - permanecer no rico solo
coberto de folhas amarelas. Por favor, não me abandone! Quando eu estava
sendo atacada pelo terrível bico daquele corvo feroz, fiz um voto.
Prometi que, se Deus me permitisse escapar, eu passaria o resto de minha
vida dentro de uma frestinha.
Os sinos, num doce murmúrio, avisaram o campanário que tomasse
cuidado porque a noz podia ser perigosa. Porém o muro, teve compaixão e
decidiu abrigá-la, deixando-a ficar onde havia caído. Dentro em breve a noz começou a germinar e a estender raízes nas
frestas da pedra.
Em seguida as raízes forçaram caminho por entre os
blocos de pedra e surgiram galhos que saíam pela fresta. Os galhos
cresceram, tornaram-se mais fortes e estenderam-se para o alto, acima do
topo da torre. E as raízes, grossas e enroscadas, começaram a fazer
buracos nos muros, empurrando para fora todas as velhas pedras.
O muro percebeu, tarde demais, que a humildade da noz e seu voto
de ficar escondida numa fresta não eram sinceros. E arrependeu-se de não
ter dado ouvido aos sinos. A nogueira continuou a crescer e o muro, o
pobre muro, desmoronou e ruiu.
Nem capela e nem gameleira.
Eu disse a uma assustada jornalista piraporense que a bela igreja
seiscentista de pedra, era mais importante que a gameleira. O pé direito
é da altura de uma gameleira adulta. Restaurada, poderia ser
administrada por uma ordem, franciscana ou outra, e instituídos missas e
festejos populares.
Pirapora, “rio onde salta o peixe”, nos espera com sua gastronomia,
banhos de cachoeira e embarque no navio-gaiola Benjamin Guimarães. Antes
degustaremos vinhos experimentais em projeto irrigado a meio caminho.
Em Minas Gerais, videiras cultivadas no Cerrado produzem vinhos de
qualidade. A intensidade da cor e aroma são características marcantes do
vinho Syrah, também chamado Shiraz, de origem francesa, que se destacou
pela adaptação, produtividade e qualidade. Foi criado por parceria
entre a Epamig e fazendas no vale do Paracatu, Pirapora e municípios do
sul do estado, tradicionais produtores de vinhos.
O vinho é produto da
videira (variedade) com o solo (e sua microbiologia), o clima, altitude,
adubação, irrigação, poda e as tradições do lugar. Vem daí o chamado
terroir. Temos que pesquisar muito para a vitivinicultura nacional
chegar ao patamar do Chile por exemplo, que percorreu o longo caminho
civilizatório do vinho.
Segundo Jancis Robinson, no livro “Curso de vinhos”, “se o típico
enólogo francês vê a natureza como força motriz, e o americano a vê como
um demônio a ser domado, seus congêneres australianos vêem-se a si
próprios como simples processadores da produção”. Estes fazem colheita
mecanizada e não têm o menor escrúpulo de não usar rolha de cortiça, mas
sim screw cap.
Alguns vêem o vinho como antídoto contra a barbárie, como o filósofo
inglês Roger Scruton em livro recente: “A distinção entre países
civilizados e incivilizados está entre os lugares onde o bebem e não o
bebem”, um viés radical. Vinho, diz ele, não é apenas um produto
agrícola ou industrial, mas a manifestação da alma de um lugar, de suas
tradições, de seus deuses pagãos e tradições cristãs.
Quando morei em Pirapora ouvi uma estória contada por Eugênia Diniz
Bastos, que tinha o hábito de singrar as águas do Velho Chico e Velhas
em barcos. Ela dizia que as mangueiras de Guaicuí com cinqüenta anos já
eram seculares, e enigmaticamente, que “Pirapora já não é o que era, mas
Pirapora ainda é o que era”.
Vamos à lenda:
ERA UMA VEZ... no tempo que as galinhas tinham dentes e minha avó
catava marinheiro de arroz... Meu avô sempre vivia às voltas com
Caboclos d’Água, descendo pelo telhado ou fazendo túneis. Nas noites de
lua cheia, na minguante e em todas as luas, bandos deles chegavam de
galho em galho, saltavam para o telhado e daí desciam pela chaminé de
mansinho. Muitas vezes vinha a família toda, pai, mãe e filhos em número
de sete, todos caboclinhos.
Então bebiam os vinhos da adega, comiam
queijos, pães de queijo, broas e biscoitos. Faziam estrepolias no
quintal e no jardim. O bom velhinho saía esbaforido tão bêbado quanto
eles a enxotá-los com a bengala pelas barrancas, de onde dando risadas
saltavam em cambalhotas nas profundezas do rio. Do outro lado da
cachoeira sentavam-se nas pedras a zombar, cada um com uma garrafa de
vinho nas mãos.
publicado originalmente na www.folhadomeio.com.br
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