As nascentes dos rios Tocantins, São Francisco e Araguaia, fortemente
associados ao agronegócio e à geração de energia, serão tombadas pelo
governo como patrimônio nacional, restringindo usos que representam
ameaças à sua conservação e à continuidade de tradições populares.
A reportagem é de Sergio Adeodato e foi publicada no jornal Valor, 20-08-2012.
A iniciativa, pioneira no país, reforça os instrumentos previstos
pela Lei das Águas para controle e proteção dos recursos hídricos.
“Agregar valor cultural é uma maneira de se evitar alterações na
paisagem, prevenir enchentes e garantir a restauração de mananciais
importantes para o abastecimento e a produção”, justifica Dalvino
Franca, da Agência Nacional de Águas (ANA), responsável pelo mapeamento e
estudos que delimitarão as áreas tombadas, que já foram iniciados. O
processo de tombamento pode ser iniciado antes do fim do ano.
“O conceito de nascente não se restringe a um olho d’água, mas a todo
o perímetro que engloba a principal bacia de drenagem formadora do
rio”, explica Franca. A partir de imagens de satélite, mapas e dados de
campo colhidos por técnicos da ANA, o processo de tombamento será
finalizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), a quem caberá a análise prévia de intervenções urbanas e
empreendimentos econômicos na área.
O trabalho se complementa ao licenciamento ambiental. Garimpos,
exploração de areia no leito, navegação, construção de portos e marinas,
pesca e captação de água são exemplos de atividades sob controle.
Municípios situados na delimitação das nascentes dos rios serão
compelidos a implantar ou expandir tratamento de esgoto. O lugar será
reflorestado para a maior infiltração de água das chuvas no solo,
reduzindo a erosão.
A proposta do tombamento de rios e bens associados à água surgiu
quando foram identificados sítios históricos sob ameaça de inundações,
como a que atingiu em 2001 a cidade de Goiás Velho, reconhecida como
Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Um sistema de alerta com sirenes
foi instalado na bacia do rio Vermelho, que cruza o centro urbano e
agora está na lista do tombamento. O tombamento, segundo Franca, não
implica desapropriação de terras, como ocorre na criação de parque
nacional ou reserva biológica, por exemplo.
A iniciativa, em sua visão, tem o poder de sensibilizar produtores
rurais em lugares protegidos, que teoricamente passam a receber atenção
especial do poder público. Os proprietários ganham a responsabilidade de
proteger recursos e poderão ser remunerados pelo serviço ambiental que
prestam ao abrir mão de áreas produtivas em nome da conservação, a
partir de iniciativas municipais, estaduais ou federais.
No programa Produtor de Água, a ANA investiu até o momento cerca de
R$ 14 milhões na conservação de água e solo, através de plantio de matas
ciliares, readequação de estradas vicinais e construção de pequenas
barragens, entre outras medidas, envolvendo 400 produtores.
“A proposta é reconhecer a importância do patrimônio hídrico e dar um
diferencial para as terras nas nascentes dos grandes rios, muitas vezes
ligados a projetos econômicos e também a culturas milenares”, completa
Franca. Ele argumenta que “a fundamentação científica evita dúvidas e
casuísmos sobre o patrimônio tombado e funciona como respaldo legal na
disputa pelo uso da água”.
Há novas metodologias para o cálculo sobre quais fontes hídricas são
mais representativas na formação de determinados rios. Mas há muito que
evoluir na precisão dos dados, hoje baseados em mapas com escala de 1
para 1 milhão, de menor resolução. No rio São Francisco, a nascente
“histórica” está localizada na Serra da Canastra, no município de São
Roque de Minas (MG). No entanto, estudos mais precisos determinaram que a
fonte principal está em outro lugar, em Medeiros (MG), que agora
reivindica o prestígio de abrigar a nascente do Velho Chico, nutrida
pelo principal contribuinte da bacia, o rio Samburá.
No norte de Goiás, uma placa na rodovia que bordeja o Parque Nacional
da Chapada dos Veadeiros, entre os municípios de Alto Paraíso e Colinas
do Sul, avisa: “Você está na bacia do rio Tocantins”. É uma pista para
quem procura a nascente deste manancial de 2,4 mil km que cruza três
Estados até desaguar no rio Amazonas.
A estrada é rota de fontes de águas termais, balneários e inúmeras
cachoeiras, como a que se localiza na propriedade de Osvaldo e Vanda
Poeck. Eles decidiram abandonar a pecuária e proteger o local, criando a
Reserva Particular do Patrimônio Nacional Cachoeiras da Pedra Bonita.
“Somos vistos como empecilho ao desenvolvimento”, diz Vanda, preocupada
com o projeto de pequena central hidrelétrica que coloca em risco a
queda d’água e o turismo que mantém economicamente a sua conservação, no
rio Tocantinzinho.
Na confluência dele com o rio Maranhão, área hoje ocupada pela
represa da Hidrelétrica Serra da Mesa, localiza-se oficialmente a
nascente do Tocantins. “Beber água do rio nem pensar”, afirma Antero
Petronilio, reclamando da poluição lançada pelas cidades próximas e do
cheiro do metano que exala no lago da usina, devido à vegetação
submersa. A captação para as torneiras na casa da família é feita em
fontes minerais dentro da mata vizinha, nas terras de seu irmão – um
garimpeiro que derruba barrancos de riachos à caça de diamantes e aluga o
cerrado de sua propriedade para exploração de carvão.
“Chove menos e, com o desmatamento, muitos grotões secaram”,
acrescenta o morador, posseiro que chegou há 51 anos no município de
Niquelândia (GO), tradicional área de mineração de níquel e quartzo,
situada perto da nascente do Tocantins, onde hoje já não há onça e
veados como antes. “Em compensação, a hidrelétrica trouxe estradas e
energia”, reflete Petronilio.
](Ecodebate, 23/08/2012) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário